O alcatrão é abrasivo, e aleija como o diabo quando temos a infelicidade de entrar em contacto imediato com ele.
E nem é culpa do material, a força da gravidade é que é chata. O impacto e os ossos partidos, o ir de rojo e a pele esfolada… Não descobri a pólvora, pois não? Todos sabemos isto, certo? Mas não, garanto-vos que não. Aparentemente, quando chega o Verão todos se esquecem.
A quantidade de motociclistas que vi este Verão conduzir de t-shirt, calções, muitas vezes chinelos, acho que superou tudo o que havia visto em verões anteriores. Desconhecimento das consequências de um erro ou um azar? Em homens e mulheres adultos, não julgo possível. Falta de dinheiro para comprar um capacete a sério e não um penico para fugir às multas, um blusão de Verão ou um par de luvas? Dada a quantidade de exemplares que vi por aí a conduzir motos de 15 e 20 mil euros, equipados com chanatas (certamente havaianas originais) e calçãozinho de banho (de marca, claro), orçamento não deve ser problema.
Então porquê? Estupidez pura e simples? Também não me parece tão linear, e embora possa ser verdade num ou noutro caso, creio que a causa é mesmo displicência, o nosso lusitano “deixa andar”, que não vai acontecer nada.
Pois tenho novidades: às vezes acontece mesmo, na maior parte das vezes sem culpa nossa. Pensem nisso: se dependêssemos apenas dos nossos dotes de condução, até se podia arriscar um mínimo. Mas depender da besta que ia a falar ao telemóvel e não nos viu, do taxista que encostou sem fazer sinal, do tipo do furgão que achou que ali era um bom sítio para fazer inversão de marcha, depender da fauna automobilística nacional para não deixar metade da pele das costas colada ao alcatrão quente, as palmas das mãos em carne viva e a cara ao melhor estilo Freddy Krueger, acham mesmo que é boa ideia?
Nós e elas
A minha moto nasceu em 1998, tem doze aninhos e chama-se Lígia. Ainda é uma jovem. A anterior chamava-se Daniela, vendi-a tinha ela quatro anos e nunca me perdoei, mas tinha de ser (já agora, esclareço que as baptizo consoante as letras da matrícula. Esta é LG, a outra era DA). Ofereci-lhe um par de pneus e um amortecedor novo. Custou um balúrdio, mas ela merece.
Também tenho um carro, já tive vários, mas nunca os baptizei. Também não dei nomes à máquina de lavar nem ao frigorífico, e, apesar dos carros estarem uns furos acima dos electrodomésticos na minha consideração – afinal sempre têm motor e rodas -, não se comparam à relação que estabelecemos com as nossas motos.
Para muitos (os que não têm moto), este tipo de relação é imcompreensível. A vocês, não preciso de vos explicar. Recordei-me de mais um exemplo: aquelas exibições de “monster trucks”, em que uma espécie de jipes com rodas gigantes esmagam e estropiam automóveis, perante os aplausos do público – que de certeza é maioritariamente automobilista. Agora, imaginem o horror que seria ver os monster trucks a esmagarem motos. Conseguiam aguentar muito tempo sem invadir o recinto e obrigar os “artistas” a correrem dali à paulada?
A comunhão com a moto, sentir que ela corresponde aos nossos movimentos, golpes de instinto, por vezes mesmo estados de espírito, não tem paralelo em mais nenhuma máquina. Não é um veículo, é uma extensão mecânica do nosso corpo.
Luis Carlos Sousa
Director
Fonte:Motociclismo